Pandemia
Florianópolis, 15 de abril de 2020
À gente refugiada com casa e sem casa
Não há modo de ter tempo para mim quando o tempo de ninguém é. O tempo que me tem já não o é quando vejo essa pele amornada pelo sol. Estes ossos, estes dentes, esta lingua cheia de gosto de café é algo do tempo que já não é. A capoeira ensina que Todo Tempo Não É Um. O que fazemos com esse restolho de tempo que somos? Ao mesmo tempo, este resto é o que retoma o tempo que vem vindo sempre. Portanto, o retiro pode ser sobre reativar a escuta desses tempos que vão e vem. Um privilégio e uma benção. Se temos tempo para ralentar o tempo do relógio, ou seja, o tempo do trabalho enquanto tempo da mais-valia, sofremos porque parece não haver tempo a perder. Ralentar o tempo para viver o tempo multiversal parece ser o privilégio e o problema, porque o tempo do trabalho como mais-valia não tem pena. Condena à morte quem tem fome, quem mora no tempo das calçadas, dos barracões abarrotados de muitos tempos com boca, braços, coluna, estômago por onde passam emoções sem tempo. Desfrutar desse tempo emergente e se revoltar contra o tempo das urgências raptados pelo tempo do trabalho como mais-valia. Seria a consciência um encontro profundo com o tempo? Pq antes do conceito trabalho, há o tempo. Porque se me encaminho para a morte num tempo de 8h, 9h, 10h horas diárias lançando-me cegamente numa piscina de pequenas bolhas de gordura com rna dentro, não estou podendo viver o tempo do tempo enquanto passagem e ancoragem. Desse modo, o trabalho enquanto grilhão do tempo das pessoas, que sequestra a vida da gente. O trabalho alienado alienando o tempo das multiplas forças, esse tempo que caminha deixando para trás as margens que cooperam com a força do rio. Esse tempo do rio, por exemplo, não deveria ser o tempo do rio e o tempo das margens tal como pensa o Brecht. Pq se assim pensa, mesmo que esteja discutindo e insuflando a revolta, acaba voltando ao mesmo afastamento tão atroz à humanidade. Acaba retornando à dissociação humanidade-natureza. Por isso, continua operando no tempo do trabalho como produção de materiais, como criação da humanidade para a humanidade. Reavivar o tempo coletivo, pode ser, escancarar o corpo para a pragmatica ação de saber-se tempo junto do tempo-árvore, tempo-montanha, tempo-melanima, tempo-minhoca, tempo-vírus. Vale pensar que este tempo não é apenas tempo da beleza, é também tempo-destruidor e também reanimador. Parece enfim, que para este tempo do tempo multiversado existir, e não só o tempo humano existir, teremos que abrir mão de tudo isso ao qual damos o nome de privilégio. Abrir mão do privado. Se formos lá no Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, ele irá falar do tempo de uma futuridade revolucionária que só pode vir quando estivermos sensíveis às diferenças produzidas pelos privilégio. Segundo ele, que surpreendentemente cita uma filosofia do tempo (pragmática, ativa por natureza), sensibilizar é urgente. Daí me pergunto, como é que se sensibiliza? Imagino q dê vários modos. Cada pessoa aqui deve se identificar com uma ou um conjunto de práticas. Eu, secretamente, sinto que a consciência é uma chama que é alimentada pelo movimento e que criar uma futuridade revolucionária é uma tarefa pra vida inteira. Ainda assim, parece que primeiro precisamos aprender a balançar, pq desabitar o corpo de práticas destruidoras, compartimentadoras e preconceituosas não é tarefa fácil. Do mesmo modo que criar um reino de conceitos parece não ajudar muito no que alguns chamaram de trabalho de base. De repente, ser míscivel. Também ser místico sem deixar o papo reto da rua de lado. Sabe pq? Por castelos daqueles de filme se constroem em todos os fronts. Por isso, parece ser bom construir um reino para si onde a fragilidade e a queda não deixem de ser uma opção. A gente precisa ser real para poder sucumbir. Quem sabe a gente se encontra de verdade por aí nestes dias de refúgio para de repente ajudar xs refugiadxs que continuaram existindo. Até ou asè
Nenhum comentário:
Postar um comentário